Com a "FL", lembra Barroso, centenas de políticos perderam o mandato |
Na última quinta-feira, a Lei Complementar nº 135, mais conhecida como Lei da Ficha Limpa, completou 10 anos. A legislação é considerada um avanço na elaboração, por mobilização popular, e em seu conteúdo. Ela impede a candidatura e até retira mandatos de pessoas condenadas por decisão transitada em julgado ou por órgãos colegiados da Justiça, seja por prática de crimes comuns, contra o erário público e até em disputas eleitorais.
A lei mudou a história do Brasil. “Ela simboliza a superação de um tempo
em que era socialmente aceita a apropriação privada do Estado e, sobretudo, a
naturalização do desvio do dinheiro público”, avalia o ministro Luís Roberto
Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e também um dos onze
ministros Supremo Tribunal Federal (STF).
Barroso estará à frente das eleições municipais de 2020, que deverão ter
a data remarcada por decisão do Congresso Nacional por causa da pandemia de
covid-19. A seguir a entrevista do ministro concedida à Agência Brasil.
Agência Brasil - Que balanço o senhor faz da Lei da Ficha Limpa?
Agência Brasil - Que balanço o senhor faz da Lei da Ficha Limpa?
Luís Roberto Barroso – Acho que foi uma lei extremamente
importante para a vida política brasileira por muitas razões. Primeiro ponto
que merece ser destacado é que ela foi resultado de um projeto de lei de
iniciativa popular que contou com mais de 1,5 milhão de assinaturas. Houve
mobilização da sociedade para que fosse editada uma lei, prevista na
Constituição, cujo propósito era proteger a probidade administrativa e a
moralidade para exercício do mandato - considerando a vida pregressa dos
candidatos. Basicamente, a lei tem um conteúdo: ela torna inelegível, ou seja,
não podem se candidatar para cargo eletivo, por oito anos, aquelas pessoas que
tenham sido condenadas por crimes graves que a lei enumera, os que tenham tido
as contas rejeitadas, ou que tenham sido condenadas por abuso de poder político
e poder econômico, sempre por órgão colegiado – portanto, sempre com direito a
pelo menos um recurso. Foi um esforço da sociedade brasileira, chancelado pelo
Poder Legislativo e sancionado pelo presidente da República, para atender uma
imensa demanda por integridade na vida pública. Esta lei, inserida em um
contexto maior, de reação da sociedade brasileira contra práticas inaceitáveis,
é um marco relevante na vida pública brasileira. Ela simboliza a superação de
um tempo em que era socialmente aceita a apropriação privada do Estado e,
sobretudo, a naturalização do desvio do dinheiro público.
Agência Brasil – O senhor sabe quantas candidaturas foram impedidas e
quantos políticos diplomados ou já em exercício no cargo perderam mandato por
serem fichas sujas?
Barroso – Eu não teria esse dado e menos ainda de cabeça, até porque boa
parte dos registros de candidatura não são feitos no Tribunal Superior
Eleitoral, mas sim nos tribunais regionais eleitorais. Eu posso assegurar que
foram muitas centenas, se não alguns milhares. Temos duas situações. Temos os
casos das candidaturas que não são registradas, assim se impede que alguém que
não tinha bons antecedentes para fins eleitorais sequer fosse candidato. Nesse
caso, há muitos milhares. E temos muitas centenas de decisões de candidatos que
chegaram a participar de eleições, muitos concorreram com liminar obtida na
Justiça e depois foram julgados inidôneos e tiveram o registro cassado. Um caso
emblemático, decidido pelo TSE, diz respeito a novas eleições [para governador]
no estado do Amazonas, em que houve a cassação da chapa e a realização de novas
eleições.
Agência Brasil – Como o senhor enxerga algumas manobras para fugir da
Lei da Ficha Limpa? Por exemplo, com lançamento de candidaturas laranjas?
Barroso – A questão de candidaturas laranjas não se coloca propriamente em
relação à Lei da Ficha Limpa. Ela tem se colocado, e há muitas decisões do TSE
nessa linha, em relação à obrigatoriedade de 30% de candidaturas femininas. Há
muitas situações em que nomes de mulheres são incluídas na chapa, mas não para
disputar verdadeiramente, apenas para cumprir tabela ou para inglês ver, e
essas próprias mulheres terminam fazendo campanha para outros candidatos,
inclusive repassando as verbas do fundo eleitoral e partidário a que teriam
direito. O Tribunal Superior Eleitoral tem reagido com veemência a essa
prática, manifestada em mulheres que têm votos irrisórios ou zero votos nas
suas campanhas - muitas delas tendo recebido verbas para fazer a sua própria
campanha. Nós recentemente, num caso equivalente no Piauí, entendemos que se a
chapa tiver candidaturas laranjas se derruba toda a chapa. Se derruba a chapa
inteira. Foi uma reação contundente do TSE para essa prática, que eu espero
tenha desestimulado de vez, porque as consequências são graves.
Agência Brasil – No dia que a Lei da Ficha Limpa completou dez anos, a
Agência Brasil trouxe percepção de entidades da sociedade civil sobre a
legislação. Todas as organizações avaliam positivamente, mas apontam problemas
no funcionamento do sistema político que não são tratados na lei. Uma das
coisas assinaladas é a possibilidade de que pessoas com ficha suja,
eventualmente até ex-presidiários, estejam à frente de partidos políticos,
inclusive, decidindo sobre o uso dos recursos dos fundos eleitorais e
partidários. Tem alguma coisa que a Justiça Eleitoral possa fazer contra isso?
Barroso – Eu gosto de dizer que o combate à corrupção tem alguns obstáculos.
Um deles são os corruptos propriamente ditos. Temos os que não querem ser
punidos e os que não querem ficar honestos nem daqui para frente. Tem gente que
precisaria reaprender a viver sem ser com o dinheiro dos outros, inclusive
gente que já cumpriu pena. Isso tem mais a ver com o estado civilizatório do
país do que com a Lei da Ficha Limpa. Os partidos políticos são pessoas
jurídicas de direito privado. Pela Constituição, eles têm autonomia. A Justiça
Eleitoral não tem muita ingerência sobre a escolha dos órgãos diretivos dos
partidos. Alguns partidos acabam sendo empreendimentos privados para receber
verbas do fundo partidário e negociarem tempo de televisão. Eu acho que
reformas recentes no Congresso, como a aprovação da cláusula de barreira, e a
proibição de coligações em eleições proporcionais, vão produzir uma certa
depuração do quadro partidário para que sobrevivam os que tem maior
autenticidade programática e verdadeira representatividade. Objetivamente, o
que a Justiça Eleitoral pode fazer é cassar os direitos políticos por oito
anos, tornando as pessoas condenadas inelegíveis. Mas ela não tem ingerência
direta sobre a economia interna dos partidos para impedir a escolha de
determinados dirigentes, que melhor fariam se deixassem os espaços da vida
pública para uma nova geração mais íntegra, idealista e patriótica. O TSE tem
apoiado junto ao Congresso um projeto de lei que já foi aprovado no Senado pela
implantação do sistema distrital misto, que é um sistema que barateia as
eleições e aumenta a representatividade do parlamento. Nós consideramos que boa
parte das coisas erradas que aconteceram no Brasil está associada ao modelo de
financiamento eleitoral e ao custo das campanhas eleitorais. Nos achamos que um
sistema eleitoral que barateia o custo e aumenta a representatividade do
Parlamento nos ajudará a superar essas disfunções associadas ao financiamento
eleitoral e a muitas coisas erradas que vem por trás dele.
Agência Brasil – O senhor vai comandar as eleições municipais. Já
tem uma data pacificada entre a Justiça Eleitoral e o Congresso para a
realização do pleito?
Barroso – A possibilidade de adiamento das eleições é real. Eu penso que ao
longo do mês de junho a Justiça Eleitoral e o Congresso Nacional, numa
interlocução construtiva, deverão bater o martelo acerca de novas datas se
sepultarmos que isso seja indispensável, embora seja propósito dos ministros do
TSE e dos presidentes da Câmara e do Senado não remarcar para nenhuma data além
deste ano.
Agência Brasil - O que o senhor acha das candidaturas para
mandatos coletivos?
Barroso – Essa possibilidade não existe. O que nós temos,
hoje ainda na Câmara [dos Deputados], parlamentares que foram eleitos por partidos
políticos, porque é obrigatória a filiação partidária, mas que têm por trás de
si algum movimento, um conjunto de ideias comuns. É o caso, por exemplo, do
Movimento Acredito que elegeu parlamentares em diferentes partidos. Esses
parlamentares se elegem por algum partido e exercem o mandato em nome próprio,
não é um mandato coletivo, mas eles pertencem a um movimento. Uma questão que
ainda vai ser decidida pelo Tribunal Superior Eleitoral que é a seguinte:
alguns desses movimentos firmam com os partidos uma espécie de carta
compromisso em que o partido se compromete a aceitar esses vínculos que o
candidato tenha com esse determinado movimento. O que aconteceu foi que na
reforma da Previdência alguns parlamentares fiéis ao que consideravam ser a
posição do seu movimento não seguram a posição do seu partido e aí há na
Justiça Eleitoral uma discussão importante sobre fidelidade partidária e a
legitimidade de alguma de sanção aplicada a esses parlamentares. Ficou uma
discussão se essa carta compromisso do movimento político com o partido vale
sobre as orientações partidárias. Eu nesse momento não posso opinar sobre essa
questão porque ela está sub judice no TSE.
Agência Brasil – Isso deve ir a julgamento quando?
Barroso – Isso é difícil de eu responder porque depende de
relator. Mas a Justiça Eleitoral é relativamente ágil, de modo que se não for
decidir neste final de semestre, deverá ser no início do próximo.
Agência Brasil – Propaganda ilegal, fake news, abuso
de poder econômico e outras ilicitudes poderão anular candidaturas e chapas no
pleito que ocorrerá este ano?
Barroso – Antes de responder, que fique claro que estamos
falando sobre eleições municipais futuras. Abuso de poder econômico e abuso de
poder político invalidaram muitas chapas e há diversos precedentes. As fake
news foram um fenômeno das últimas eleições. O mundo inteiro está
estudando maneiras de enfrentar esse problema. As eleições americanas tiveram
esse problema. O plebiscito sobre Brexit teve esse problema. As eleições na
Índia enfrentaram esse problema. De modo que as fake news estão sendo objeto de
equacionamento pela legislação e pelo Poder Judiciário de diferentes países.
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